A geografia pode ser o “Cálice Sagrado” das Ciências Humanas
Pouco prestigiada, essa talvez seja a disciplina mais multi e interdisciplinar das Ciências Humanas
Os fãs do personagem Indiana Jones certamente se lembram da cena em que um grupo de arqueologos chega a uma prateleira com muitos cálices, sendo que um deles é o usado por Jesus na última ceia. Indiana supera seus oponentes ao desprezar a beleza exterior para escolher aquele mais simples, que seria usado por um carpinteiro.
Neste texto, argumento que, se você busca um espaço nas ciências humanas para fazer pesquisas inter e multidisciplinares, deve também buscar, entre as disciplinas, aquela com menos ornamentos exteriores.
Durante o período que morei em Oxford, acompanhando a minha esposa, a egiptóloga Thais Rocha, me deparei com algo cuioso: o departamento de geografia de Oxford é o espaço mais diverso e multidisciplinar das Ciências Sociais na Universidade.
Em vez de trazer apenas geógrafos, os professores acolhiam pesquisadores das mais diversas disciplinas, como ciência de dados e artes. O Dr. Rafael Pereira, do Ipea, foi doutorando na instituição e pode falar com mais experiência e detalhes sobre essa disposição da geografia para receber o diferente.
O mesmo não é verdade em relação a outras disciplinas das humanidades. Outro dia, conversando com um historiador que se embrenhou pelos campos da história oral e, por isso, adentrou no território “pertencente” aos antropólogos, ouvi:
Claro que a experiência do doutorado valeu a pena. Agora acho que pode se libertar da dependência antropológica colonizadora.
Entrei tardiamente na disciplina antropológica e não tive nem tenho a pretenção de seguir carreira acadêmica, então, o hermetismo do fazer do antroólogo me incomoda apenas na medida em que — por razões outras também — o antropólogo não fala com a sociedade. (Por exemplo, o único livro de uma antropóloga sobre evangélicos, talvez o fenômeno social mais importante da atualidade, feito para o público não-especialista no Brasil, é da professora Clara Mafra, de 2001. Mas esse distanciamento do debate público não é algo exclusivo dessa disciplina, nem a defesa do território.
Esse tema da abertura ou rejeição das disciplinas para o novo, o estranho, o diferente é relevante, por exemplo, em relação a oportunidades de pesquisa relacionadas a tecnologias de informação e comunicação. Em parte pelo menos por essa posição resistente, talvez negacionista da relevância de certos assuntos, a antropologia chegou muito atrasada ao tema das relações sociais mediadas pela internet.
O primeiro trabalho que eu conheçosobre o assunto, The internet, an ethnographic approach, do inglês Daniel Miller, que foi meu orientador no mestrado e doutorado, é de 2001; é um estudo desbravador quando a internet já estava presente nas universidades desde meados dos anos 1980. E no Brasil o tema continua pouco prestigiado em comparação com temas mais “nobres”; basta observar a quantidade de pesquisadores e grupos de pesquisa envolvidos nesse tipo de pesquisa.
Por causa também dessa resistência, um campo de pesquissa novo emergiu, chamado de “humanidades digitais” ou “digital humanities”, que — corrijam-me se estiver errado — poderia existir dentro das disciplinas existentes das ciências humanas, história, sociologia, linguística, etc, se os representantes dessas disciplinas tivessem acolhido principalmente metodos novos de pesquisa.
A questão é que o departamento de geografia de Oxford talvez não seja um caso peculiar. A geografia talvez seja a exceção à regra mas ciências humanas, privilegiando a variedade e o novo com mais ênfase e interesse genuínos do que querendo perpetuar suas linhagens teóricas e metodológicas.
Talvez — gostaria de saber mais — os departamentos de geografia sejam o espaço em que o novo é acolhido junto tambem com a interdisciplinaridade. Porque talvez os geógrafos nunca tenham cultivado um tipo de orgulho territorial em relação a sua área de atuação e por isso hoje se sintam a vontade para abraçar temas, métodos, lentes analíticas e bibliografias de todas as disciplinas.
Se esta hipótese estiver correta — gostaria de ouvir geógrafos — a geografia é o espaço acadêmico das humanidades mais rico de se ocupar e ao mesmo tempo o menos prestigiado.