E se Exu perguntasse: — antropologia para que?
A antropologia é das disciplinas mais exuberantes e, ao mesmo tempo, desprezadas ou ignoradas — com poucas e notáveis exceções como é o caso deste livro resenhado pela The Economist— no mundo contemporâneo. Neste rascunho, reabro um diálogo incômodo com dois antropólogos, um que eu conheço bem, o Dr. Ryan O’Byrne, e outro que conheci ontem, o Dr. Vitor Queiroz, para perguntar por que eles não se esforçam mais para compartilhar com o resto das pessoas, inclusive com aquelas que elas estudam, o biscoito fino que eles produzem.
Ontem fui transportado de volta para o departamento de Antropologia da UCL, o lugar onde eu renasci espiritualmente — pode-se dizer.
Esse “teletransporte” aconteceu assistindo a apresentação do professor Vitor Queiroz da UFRGS. Ele apresentou o resultado de uma pesquisa longa que ele fez / vem fazendo. O título da fala de Vitor foi: Eu gosto de você porque você gosta de mim: pesquisando Bará-Exu, seus afetos e mediações, e está disponível neste link do YouTube.
Fiquei encantando assistindo Vitor — porque ele sorria, por causa de sua erudição divertida, pela beleza e complexidade do tema e porque o tema é associado à presença afro no Brasil. Isso é importante — para mim é — porque usa equipamentos teóricos sofisticados para apresentar a exuberância de um assunto desprestigiado. Geralmente aquilo que tem a ver com pessoas pobres no Brasil dá a impressão — para quem vê de fora e de longe — de ser coisa infantil, simples. Algo curioso talvez; mas não é letra de câmbio, nem alta filosofia; é coisa passageira, da rua. O acarajé, o samba. Mesmo quem olha para isso com generosidade em geral é desinformado, porque a imagem do pobre geralmente supõe uma pobreza de espírito, de cultura, de erudição. E o brilho do trabalho de Vitor — e da antropologia — é dar uma invertida nessa régua de valores; exibir a sofisticação que tradições culturais têm, inclusive aquelas de quem não têm o diploma do ensino fundamental.
Ao mesmo tempo, ao acompanhar a fala de Vitor, ressurgiu uma coceira intelectual que me perseguiu — uma alergia? — durante os anos fazendo mestrado e doutorado em um departamento respeitado de antropologia, cercado por todos os lados de pessoas brilhantes como Vitor; tendo conversas surpreendentes de passagem, encontrando alguém nas escadas, ou na hora do almoço, certamente durante os seminários e depois deles, quando a comunidade de professores, pesquisadores e alunos se reunia para beber vinho e conversar informalmente.
Eu escutava Vitor falar com segurança, tecendo seus argumentos com os fios de outros antropólogos e cientistas sociais; ritmicamente quase, jazzisticamente, um improviso baseado nas regras dessa arte: dados, experiências, leituras, lugares, imagens, autores iam se enredando em sua argumentação feita sem partitura, sem ler. E atrapalhando meu encantamento com a maestria da performance vinha a minha coceira perguntando, soprando no meu ouvido mental: — Sim, ele está falando sobre um tema popular e mostrando para não iniciados os muitos brilhos inesperados que esse tema tem, mas o que volta para as pessoas que vivem esse tema e que não tem doutorado em antropologia?
Fiz a mesma pergunta ao meu amigo, o Dr. Ryan O’Byrne, alguns dias depois de ele passar mais de 5 horas com seus examinadores debatendo sua tese. Ryan foi — na minha opinião — o melhor estudante da nossa turma de doutorandos. Ele chegou à antropologia tardiamente, passou uma temporada viajando pela Europa, vagando, vagabundeando, levado pela vida e pela música eletrônica pela qual ele era/é apaixonado. Depois ele viajou pela África, e se envolveu com o serviço de seu país, a Nova Zelândia, para receber refugiados africanos. Dali — eu acho, estou registrando isso tudo de memória — ele esbarrou com a antropologia e ela roubou dele o interesse por quase todas as outras coisas. A paixão pelo Rugby foi desconstruída. A antropologia se apresentou como uma maneira sofisticada de interagir com o mundo; desde o chão onde as pessoas vivem até as nuvens onde as ideias pairam e se irradiam.
Ryan foi o melhor do nosso grupo porque ele era/é profundamente erudito, destemido em termos do conhecimento dos textos sagrados para os antropólogos, ao mesmo tempo em que, sendo um pouco mais velho que o pessoal de 20 e poucos anos, recentemente saídos das cadeiras dos cursos de graduação, ele agia propositalmente para nos reunir, estabelecer vínculos, para as pessoas se conhecerem. Ele não deixou que isso acontecesse espontaneamente — o que seria ruim dado que vários colegas eram/são pessoas introvertidas e (ainda por cima) inglesas. Vem daí, dessa mistura de maturidade social e devoção disciplinadíssima à disciplina, o meu apreço pelo Ryan. Eu me sentia uma pessoa melhor — considerando minha condição de “tio” que caiu de paraquedas naquela tribo de guerreiros e guerreiras e/ou sacerdotes da antropologia — por perceber e receber a atenção do Ryan.
Um pouco mais de contexto antes de retornar ao tema da coceira intelectual. Ryan fez a pesquisa de campo em uma localidade no Sudão do Sul — o país mais jovem do planeta hoje, recentemente estabelecido a partir da ruptura de grupos políticos e militares no Sudão. A minha admiração por Ryan continuava crescendo. Esse tipo de trabalho só quem faz são missionários e antropólogos. Ele aprendeu a língua daquela localidade, tomou muitas vacinas, e viajou com a companheira dele, a Marie, uma irlandesa também branquíssima como o leite, por aeroportos até chegar ao local mais próximo de onde ele pretendia trabalhar; e que fica a 2 horas de viagem na garupa de motos da cidade ou vila mais próxima. Eles viveram um ano nessa localidade, em um país recém criado e portanto ainda exposto à violência de grupos armados.
Ryan estudou a propagação do pentecostalismo entre os moradores da localidade em que ele e Marie moraram. E ao concluir a tese, passou por 5 horas de arguição com os examinadores — o normal é que esse evento dure 3 horas. Alguns dias ou semanas do exame que o consagrou doutor na disciplina — não lembro direito o tempo transcorrido— encontrei com Ryan no departamento e — a coceira — perguntei para ele: — O que você concluiu nesse longo processo de produção da sua tese? Como você explicaria isso para uma pessoa que não é antropólogo? Ele primeiro me olhou intrigado — talvez ligeiramente incomodado — e respondeu primeiro que a conclusão da pesquisa dele apenas fazia sentido dentro do debate antropológico. Ela não tinha sido produzida como uma reportagem; dialogava com temas da disciplina. Dai ele pensou mais um pouco, pensou, pensou, e disse: — Eu concluí que tanto fazia que as pessoas da localidade adotassem ou não o pentecostalismo, porque no fundo, aquilo era uma interpretação deles sobre o cristianismo que tinha mais a ver com a religiosidade e a vida (a “cosmovisão”) deles do que com o que de fora alguém entende sobre o que significa ser cristão ou pentecostal.
Não sei se ele reconheceria essa resposta; foi o que eu registrei daquela conversa informal.
Vitor — retornemos ao início do assunto — chamou sua fala de Eu gosto de você porque você gosta de mim: pesquisando Bará-Exu, seus afetos e mediações. (Se você não é cientista social e se for mas não for antropólogo, talvez esse título soe esquisito, mas os títulos dos escritos antropológicos são assim — e, para não dispersar da trilha já tortuosa que estou trilhando, não vou tentar explicar o o que esse “assim” quer dizer.) A parte do “Eu gosto de você porque você gosta de mim” a gente descobre assistindo a fala. Vitor frequenta um terreiro de candomblé em Campinas — ele foi aluno da Unicamp. E antes de começar a pesquisa, que é em parte sobre a entidade Exu, ele vai a esse terreiro para falar com Exu — incorporado em outra pessoa — sobre suas intenções. Vitor conta que Exu falou uma porção de coisas que ele não entendeu bem e, antes de se virar e sair caminhando, Exu teria concluído suas considerações dizendo algo como: — Pode seguir em frente. Eu gosto de você porque você gosta de mim.
Depois do tet-a-tet com Exu, Vitor conversou com o sacerdote do terreiro, que confirmou a interpretação de que Vitor tinha o apoio da entidade para seguir com a pesquisa. Foi o que ele fez — com brilhantismo. E também por causa disso ele hoje se tornou professor na Universidade Federal em Porto Alegre, a cidade em que Vitor fez a maior parte da pesquisa de campo. Exu — ele explicou na fala — é uma entidade associada ao comércio, à troca de produtos por dinheiro, a esse movimento e transformação; também associado à política, que também é um âmbito de trocas e transformações e movimento; também da comunicação — Vitor menciona as mídias digitais onde aquele encontro estava acontecendo, de novo a circulação, as transformações e as trocas.
Mas — a minha coceira — um tempo depois de assistir a maior parte da apresentação — porque estava simultaneamente envolvido em outros “corres” — voltei à resposta de Exu à consulta de Vitor. — Faça a pesquisa; eu gosto de você porque você gosta de mim. Me perguntei se Exu não falou: — Veja, você está fazendo algo para você e para outras pessoas, seguramente está levando uma impressão positiva sobre mim, sobre nós aqui desta tradição, por isso, siga adiante, eu sei que você gosta de mim, mas — e isso fica nas entrelinhas — a nossa troca não está clara. Você está levando daqui, de mim, de nós, mas como isso volta para aqui, para mim, para nós?
É uma pergunta parecida que eu fiz ao Ryan. Como isso volta para a sociedade, para as pessoas que ele estudou e para os bilhões de pessoas que não suspeitam que esses sudaneses do sul existam; e mesmo para o debate importante que existe hoje sobre as consequências do pentecostalismo no mundo contemporâneo; uma religião que não para de crescer. De que forma o estudo dele nos ajuda a pensar melhor sobre esse tema? Se (isso me ocorreu anos depois, nunca perguntei ao Ryan) tanto faz para as pessoas que ele estudou, serem ou não pentecostais, porque elas se dão ao trabalho de se converterem? Se não têm importância, por que elas dão importância?
É o que eu pensei ouvindo a fala do Vitor ontem. — Então, Vitor, você é brilhante e é encantador te ouvir. É bonito ver — porque o meu entendimento da disciplina é limitado — o quanto existe de sofisticação, de complexidade, de beleza mesmo nesse assunto que é encantador mas passa batido para a humanidade. Você estudou uma prática afrobrasileira que acontece no Mercado Central de Porto Alegre e que ninguém ou quase ninguém dá bola. As pessoas (não iniciadas) vêem ali um mercado, e para elas talvez tanto faça se o mercado continuar público ou seja privatizado. Você fez o que o meu orientador definiu como sendo a missão e o trabalho do antropólogo: — ver o que é importante naquilo que é (invisível para a sociedade por ser) comum e banal. Você provavelmente já publicou artigos acadêmicos feitos a partir dessa pesquisa. Antropólogos de outros países provavelmente estão mencionando o seu estudo nos artigos e livros que eles estão escrevendo. Você falou durante a apresentação de um evento na câmara de vereadores (entendi bem?) de Porto Alegre, que — não terminei de ver — contribuiu para o mercado e essa tradição que você estudou ser reconhecida e protegida e valorizada. Mas — a coceira — e daí? Respeitosamente: e daí? Antropólogos, e daí?
É uma conversa longa — talvez dentro da disciplina — e daí? A arte refinada da qual vocês são os herdeiros, quando que ela retorna para a sociedade? Se vocês vêem a maravilha das pessoas, independente delas serem ricas ou pobres, falarem inglês ou o português das quebradas, não terem diploma do ensino fundamental ou serem doutores e doutoras? Em que momento isso volta para o terreiro, para Exu, para quem mantém essa prática e para as pessoas que não dialogam nem interagem com essa prática? Não falo com desrespeito — ao contrário. Falo com todo o respeito. Aliás, falo justamente por ter provado dessa arte que você domina, ter presenciado a incorporação de entidades como Mary Douglas e o seu xará Victor Turner nos meus pares sacerdotes.
A antropologia já foi uma disciplina importante fora da disciplina. Não sou entendido no legado do alemão Franz Boas, um dos pilares da antropologia contemporânea, mas entendo que esse alemão foi uma das vozes que se ergueu nos Estados Unidos racista e eugenista para denunciar o racismo e o desprezo (com consequências políticas e violentas) por quem não é branco e educado.
Então, e daí, Vitor? E daí, antropólogos? Quando vocês vão falar para fora? Vão fazer circular esses supostos tesouros e encantos fora dos círculos de iniciados e iniciadas? É uma pergunta ingênua? OK. Eu também gosto de vocês.