O que acontece quando o pobre faz a sociologia do rico?

juliano spyer
4 min readOct 27, 2021

Emicida resumiu a sociologia da esquerda de classe média brasileira

No programa Roda Vida, o rapper condensou o que a antropologia sobre o brasil popular e o que a antropologia sobre o cristianismo anunciam há 20 anos: sobre como a esquerda intelectualizada, em vez de combater, reproduz o preconceito de classes no Brasil.

O fato do Emicita ter resumido algo que ecoa com os resultados de pesquisas antropológicas não diminui a importância do que ele fala. Esses antropologos e antropólogas aprenderam o que aprenderam vivendo no Brasil popular.

A professora Claudia Fonseca — a pessoa que eu cito praticamente todas as vezes que falo sobre esse tema — usa o termo “apartheid” para descrever a segregação de classe no Brasil. E isso é verdade mesmo nos espaços intelectualizados, que defendem a justiça social, mas tratam o pobre como coitado e inferior por não ter estudado.

Aqui o que ela escreveu no epílogo de seu Família, Fofoca e Honra:

De algum modo, o Brasil se apresenta como um caso extremo da sociedade de classes. Aqui, a diferença entre a elite — de uma sofisticação cosmopolita — e o zé-povinho não cessa de crescer. Primeiro em termos financeiros. O Brasil bate todos os recordes de má distribuição de riquezas. Segundo cálculos atuais, a desigualdade é a mais terrível do mundo: mais da metade da população brasileira ainda vive com menos de US$70 por mês. No plano cultural, isso criou um sistema que, em muitos aspectos, pode ser comparado ao apartheid da África do Sul. Entre ricos e pobres, existe pouco contato: eles não moram nos mesmos bairros, nem usam os mesmos meios de transporte. Para uns, há escolas particulares, táxis, médicos a US$100 por consulta. Para outros, a escola pública sucateada, os ambulatórios, os ônibus. Em resumo, para muitos brasileiros, os únicos momentos de contato interclasses se produzem na conversação com a faxineira ou durante um assalto. As barreiras de três metros de altura erigidas diante das casas burguesas são como uma metáfora do fosso quase intransponível entre os dois mundos. A histeria frente ao fantasma da violência urbana é o efeito colateral.

E é genial que Emicida, nesta fala breve, apresentada no fim deste texto, comece comentando a crítica feita pelo Mano Brown naquele último comício do ex-ministro Haddad, então candidato petista concorrendo com Bolsonaro, no fim do segundo turno da campanha presidentecial de 2018, então esmiuce a ideia sobre essa postura paternalista em relação ao pobre, e termine falando de maneira clara e direta sobre o preconceito de intelectuais de esquerda em relação às igrejas evangélicas.

A minha única dúvida ou inquietação em relação a essa fala é se já houve um tempo em que a esquerda teve mais proximidade com o Brasil popular. Emicida, usando uma metáfora do Preto Zezé, diz que o intelectual de esquerda abandonou o povo como um homem larga a companheira por uma “novinha”, por ter melhorado de vida.

Talvez isso tenha acontecido e venha acontecendo ao longo dos anos. O professor Antônio Cândido relata sua experiência de conhecer o Brasil pela literatura de Graciliano Ramos, em uma época em que viajar o país era caro e demorado. E o PT trouxe para a política um líder de origem popular e que fez um governo sensível à condição desses brasileiros.

Ao mesmo tempo, a esquerda brasileira se posiciona de forma arrogante, conforme Emicida aponta, ao tentar lacrar a opinião e as falas dos pobres alegando baixa escolaridade e portanto incapacidade de ter a mesma capacidade para refletir e entender, o que sugere que essa “ficha”, se está caindo com o tempo, ainda continua caindo.

Assisti uma parte da entrevista que o rapper Mano Brown gravou com Lula para seu podcast Mano a Mano; percebi o gesto empático e generoso de Brown demonstrando respeito pela trajetoria do Lula e pelo legado que ele construiu como político e presidente. E pelo esforço de, mesmo delicadamente, fazer perguntas que não fossem apenas oportunidades para Lula se auto-elogiar. Por exemplo, ao questionar o ex-presidente sobre o PT sobre a falta de quadros novos, lideranças novas no partido, que continua centralizado na figura do Lula. E Brown também menciona o comício do Haddad em que ele criticou a postura elitista da esquerda. Infelizmente Lula desconversou em ambas ocasiões.

Em resumo, apesar do maior partido de esquerda do país ser liderado por um brasileiro de origem popular, petistas e representantes da esquerda seguem tratando o pobre — e o fenômeno evangélico, por consequência — com preconceito, querendo legislar sobre o que é certo e como as coisas devem ser pensadas e feitas, talvez da mesma maneira como a esquerda dos anos 1960 tentou “domar” a obra da Carolina Maria de Jesus, querendo torná-la uma espécie de “voz das favelas”.

E o que Caetano escreveu para e sobre Aracy de Almeida na canção A voz do morto pode ser dito também para e sobre Carolina, e talvez por esse motivo Carolina tenha sido descartada gradualmente após a publicação de Quarto de Despejo, seu grande sucesso Editoral.

Caetano escreveu:

Eles querem salvar as glórias nacionais
As glórias nacionais, coitados

Ninguém me salva
Ninguém me engana
Eu sou alegre
Eu sou contente
Eu sou cigana
Eu sou terrível
Eu sou o samba

Enfim, aqui o vídeo do Emicida refletindo sobre a sociologia do brasileiro de esquerda de classe média:

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