“Ninguém liga”

juliano spyer
2 min readJan 15, 2018

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Eu senti abandono no sentido mais terrível da palavra em uma visita a Nova York. Havia uma possibilidade ainda distante de eu ser transferido para trabalhar lá e o refrão “if you make it there, you make it everywhere” embalava meus pensamentos.

A visita era para conhecer a sede da empresa, mas eu tinha pedido a passagem para sábado, para eu aproveitar o fim de semana. Mas, chegando ao hotel – um muquifo sujo de quartos escuros – um atendente provavelmente desinteressado e vulgar disse que não havia reserva para mim.

Veja, esse era o tempo antes da comunicação digital ter migrado dos computadores para os smart phones. Antes do tempo do Facebook. Eu não tinha cartão de crédito (como não tenho hoje) nem o número de ninguém fora do escritório.

Nada vagamente humano medra naquele miolo de Manhattan chamado Midtown. Difícil explicar. Parece que, por não ter nada ali afetivamente importante para ninguém, uma sensação de desespero terminal tenha se encrostado na paisagem.

Mas eu só consegui ver isso, ver sentido, enquanto carregava a minha mala pelas ruas vazias daquele sábado. Eu era um problema que não dizia respeito a ninguém ali – porque ninguém mora ali.

Pensei na fome que eu iria sentir naqueles dois dias até a segunda-feira. Pensei no medo de passar as noites na rua. E tive vergonha disso antecipadamente. Uma vergonha de fracasso, por ter caído numa dessas gretas da vida.

Mas algum pequeno milagre aconteceu, alguém viu alguma das mensagens na secretaria eletrônica, e o equívoco foi resolvido algumas horas depois. Dai fiquei apenas como esse retrato instantâneo da antecipação do desespero.

Lembrei desse episódio observando um mendigo – talvez fosse apenas um bêbado – que cruzou brevemente o meu caminho para casa hoje.

Num país em que moradores de rua costumam ser cordiais e passivos, esse homem cantava uma espécie de zumbido estridente, monótono e sem palavras. Numa dança de bêbado, ele resvalava a cabeça nas paredes das lojas fechadas e fazia o tal ruído. Inesperadamente virou de lado e urinou segurando com as duas mãos no poste.

Seria um consolo dizer que ele estava louco. Não estava. Era apenas um homem bêbado com um pedido de socorro adoecido na garganta, feito ambulância. E no fim de cada respiração ele gritava e repetia olhando para cima (era cinematográfico): – “ninguém se importa.”

Os empregados da mercearia saíram e talvez tenham achado graça. Meus anônimos companheiros de ponto de ônibus haviam, como eu, se afastado. Não por medo, porque aquele desespero não tinha raiva violenta.

Acho que estávamos hipotizados pelo espetáculo: o jorro de vida no meio da monotonia. Ali estava um homem desfilando sua verdade interior: – “ninguém liga.”

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Written by juliano spyer

ethnographer, digital media enthusiast and writer. Mais em: www.julianospyer.com

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