Evangélicos, saiam do armário

Evangélicos devem combater o bullying anti-religioso em ambientes intelectualizados de esquerda e, ao mesmo tempo, disputar em suas igrejas a narrativa sobre a unanimidade do apoio evangélico ao governo Bolsonaro.

juliano spyer
5 min readNov 10, 2021

Não me refiro aqui a sair do armário como o termo é geralmente usado, no sentido de se assumir gay. Mas a um sentido mais amplo dessa metáfora: o da pessoa se libertar da imagem ou estigma imposto socialmente.

Fonte: IStock

O Povo de Deus foi escrito pensando em leitores com títulos universitários e que se identificam com valores progressistas, porque são essas as pessoas — as que têm biografias parecidas com a minha — que não convivem com evangélicos nem conhecem a literatura científica sobre o assunto e, apesar disso, expressão opiniões a respeito desse tema carregadas de convicção e de desinformação.

Mas também pensei em leitores com outro perfil: evangélicos aproveitando o livro Povo de Deus para conhecerem algo mais sobre a própria história e sobre o que acadêmicos e pesquisadores vêm publicando nesse campo vasto que podemos chamar de sociologia do cristianismo.

Por ter tido esse outro público em mente, venho recebendo e geralmente aceitando convites para falar para audiências evangélicas. A primeira vez que isso aconteceu, há um ano, pouco depois da publicação do livro, conversei com professores e estudantes da Unicesumar; uma conversa franca e respeitosa que terminou com a pergunta dirigida a mim:

  • Qual conselho ou recomendação você daria para jovens evangélicos hoje?

E eu recomendei que eles saíssem do armário — no sentido de deixarem de esconder a própria religião ou religiosidade em ambientes que ridicularizam essas práticas.

Veículos de comunicação parecem tratar especialmente o cristianismo evangélico de maneira preconceituosa. A ponto de um pastor batista mencionar durante um culto sua surpresa ao ver um grande jornal publicar uma entrevista com um olhar favorável aos evangélicos.

Títulos de matérias não falam do “católico que roubou um banco” ou do “ateu que matou os pais”. O único momento em que a religião é mencionada para denunciar um ato condenável acontece quando o sujeito da ação é evangélico. Pelo menos essa é a minha percepção. Verifiquem.

Os ambientes acadêmicos, formados por setores sociais semelhantes aos das redações de jornais, também parecem ser particularmente policiados em relação a esse assunto. Ter uma religião — a menos que seja algo percebido como exótico e por isso interessante — sinaliza, nesses contextos, que a pessoa é intelectualmente inferior. Já escrevi neste artigo acadêmico sobre como uma jovem evangélico mudou sua maneira de se vestir para evitar esse estigma enquanto cursava a universidade.

E essa postura em relação a religiões e religiosos é um tipo bullying; agressões geralmente simbólicas da maioria para constranger determinados grupos.

Um parêntese:

Essa reflexão conduz a outra, também surpreendente, de quanto algumas pessoas que defendem o estado laico dizem isso ao mesmo tempo em que atacam pessoas por sua religiosidade.

Por exemplo: quando uma matéria jornalística sobre o Povo de Deus circula nas mídias sociais, pessoas usam termos estigmatizantes e ofensivos para descrever suas percepções sobre evangélicos. Fazem isso publicamente. Aparentemente sem medo ou constrangimento de serem acionadas legalmente por intolerância religiosa.

Fecho o parêntese.

Por isso recomendei no encontro com os estudantes da Unicesumar que eles saiam do armário e se apresentassem abertamente como cristãos, para combater esse tipo de policiamento moral. Para trazer a imagem geralmente simplificada do evangélico descrito nos jornais para alguém presente e real. E questionem e constranjam aqueles que praticarem esse tipo de agressão simbólica.

O ato de sair do armário têm outra finalidade além de preservar o individuo de ser atacado; uma finalidade social, coletiva, com consequências mais amplas: expor o preconceito de quem geralmente se percebe como sendo “ilustrado” e portanto “imune a preconceitos”. E dessa forma, educar a sociedade sobre a diversidade do fenômeno evangélico.

O jornalista Ricardo Alexandre, ele próprio cristão, escreveu um texto que continua atual e relevante, publicado na revista Carta Capital em 2014. Aqui um trecho:

A resposta mais honesta não poderia ser mais frustrante: os evangélicos são qualquer pessoa, todo mundo, ou, mais especificamente, ninguém. São uma abstração, uma caricatura pintada a partir do que vemos zapeando pelos canais abertos misturado ao que lemos de bizarro nos tabloides da internet com o que nosso preconceito manda reforçar. Dizer que “o voto dos evangélicos decidirá a eleição” é tão estúpido quanto dizer a obviedade de que 22,2% dos brasileiros decidirão a eleição. Dizer que “os evangélicos são preconceituosos”, significa dizer que o ser humano é preconceituoso. É não dizer nada, na verdade.

Mas neste momento em que o país vem sendo governado por um presidente que promove valores explicitamente conflitantes com valores cristãos como: o uso de armas de fogo, a defesa de torturadores, modos grosseiros e desrespeitosos, o desmatamento das florestas, a desinformação sobre os perigos do Covid-19; neste contexto específico, a saída do armário do evangélico tem também outra conotação.

Sair do armário, neste segundo caso, significa combater de maneira pública a associação que se criou entre cristianismo evangélico e o governo atual. Isso não é verdade segundo pesquisas de opinião que apontam que evangélicos estão divididos de maneira equilibrada em um eventual segundo turno entre Bolsonaro e Lula na disputa pela presidência em 2022. Mas alguns líderes seguem sequestrando o termo “evangélico” como se esses líderes representassem a totalidade dessas mais de 60 milhões de pessoas. Evangélicos que não se identificam com eles nem com esse governo devem disputar essa narrativa também dentro de casa, em suas igrejas.

Talvez as lideranças da sua igreja sejam, por motivos diversos, defensoras do governo atual, e elas constrangem os fieis — aqueles descontentes com o governo e em desacordo com a postura do presidente — a silenciarem, sob o risco de serem punidos de maneiras diversas e geralmente veladas. Por isso a importância de atitudes de evangélicos que se pronunciam publicamente e conjuntamente, para encorajar outros evangélicos descontentes a fazer o mesmo.

É essa a segunda maneira de sair do armário a que me refiro. E ambas, eu entendo, trarão consequências positivas para a mudança da percepção pública sobre os evangélicos, especialmente entre os brasileiros com maior escolaridade, distantes do contexto em que igrejas evangélicas atuam nas periferias, e por isso mais propensos a terem posturas intolerantes e simplificadoras em relação a esse tema.

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juliano spyer
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Written by juliano spyer

ethnographer, digital media enthusiast and writer. Mais em: www.julianospyer.com

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