Lobisomens e traficantes, o passado e o presente do subalterno rebelde

juliano spyer
9 min readSep 6, 2021
Licença: Domínio público. Fonte: Openclipart

Lobisomens existem para muitas pessoas com quem convivi durante o trabalho de campo. Outros seres mágicos também são mencionados, mas menos frequentemente e por pessoas mais velhas, mas o lobisomem ainda era um ser presente em Balduíno, no início dos anos 2010, e certamente continua existindo.

O folclorista brasileiro Luís da Câmara Cascudo escreveu sobre esse personagem (1) cuja origem na imaginação dos europeus seria uma história mítica dos povos gregos. Lycaon, príncipe da Arcádia, tentou matar Júpiter ao hospedar-se na casa do deus e por isso foi transformado em lobo. A transformação em monstro resulta da punição a um ato de traição.

O lobisomem que existia ou existe para os moradores de Balduíno é a mesma criatura descrita por Cascudo a partir de inúmeras fontes.

Consistentemente os relatos que eu escutei se referem ao lobisomem como sendo alguém que “bateu no pai ou na mãe”, ou ainda nos avós. É, portanto, segundo essa interpretação, o maior crime moral que alguém pode cometer: fazer sofrer aquela pessoa a quem se deve a vida e a criação.

Descobri tardiamente, já vivendo muitos meses em Balduíno, que o senhor da casa em frente à nossa era ou tinha sido um lobisomem. Era um senhor muito velho — chamado às vezes, por brincadeira e sem que ele ouvisse — de “Matuzalém”.

Eu, que acredito — por via das dúvidas — em fantasmas e espíritos, apesar da criação racionalista, evitei o convívio com esse senhor e me tranquilizava por saber que, sendo alguém com muita idade, sua versão lobisomem também teria dificuldades para se mover e talvez estivesse desdentado.

Em Balduíno — e certamente, conforme confirma o artigo de Cascudo — pelo sertão brasileiro a transformação da pessoa em lobisomem acontece no lugar em que animais de domesticados “espolinham”. O dicionário online Estraviz ensina que espolinhar quer dizer, entre outras coisas, “deitar-se no chão, agitando-se e rebolando-se.”

Ouvi as pessoas falando que a transformação acontecia em currais e que, para a mudança corporal acontecer, o homem deitava-se com os ombros no chão e roçava as costas (espolinhava) sobre a terra do curral, onde — em outras circunstâncias — os animais faziam o mesmo, deitavam e roçavam suas costas.

Esse seria o ritual para o corpo da pessoa amaldiçoada, comportando-se como bicho, arrastando e rebolando no chão como outros bichos fazem, ceder ao chamado e deixar o monstro emergir de dentro de si.

Não me disseram — nem Cascudo explica — se o lobisomem têm consciência de ser essa criatura, se ele sofre pela transformação (conforme sugerem os filmes contemporâneos, é algo fora do controle da pessoa), ou se a pessoa é consciente e aceita essa condição.

Durante os meses iniciais vivendo em Balduíno, me interessei pelo assunto da violência. O tema cotidiano era a chegada do tráfico e de gangues ainda amadoras de criminosos nas últimas décadas. E sobre como essa situação produzia desconforto por representar uma tentação para jovens locais que, pobres e sem perspectivas de poder consumir produtos da moda desejado, se envolviam com o crime.

Esse era um tema falado porque envolvia o contexto de vida em Balduíno e as relações familiares.

O contexto era o da entrada da mulher no mundo do trabalho fora de casa — como faxineiras, cozinheiras, etc. As mães eram frequentemente pressionadas por seus parentes para não abandonar o cuidado dos filhos, porque a responsabilidade por supervisionar as crias — saber o que estão fazendo, com quem andam — é dela.

O distanciamento provocado pela condição nova das mães, que já não trabalham de ou no entorno da casa e já não trabalham junto com seus filhos — por exemplo, extraindo produtos da floresta ou mariscando — causava, pela lógica dos moradores, inclusive de algumas mulheres — um estremecimento na maneira como as relações familiares deveriam acontecer.

A criança e o adolescente desassistido durante o dia, especialmente no contraturno escolas, em um bairro sem alternativas de lazer ou de estudo — como escolas de línguas ou de artes marciais — incentivavam esses jovens a passar muito tempo entre si e, por consequência, pelo pensamento dos pais, valorizarem amizades vãs e diminuírem a importância das relações familiares, especialmente a obediência ao pai e à mãe.

Nesse ponto a história dos lobisomens e a situação de vida dos moradores do bairro se cruzam — e este parece ser o motivo para o lobisomem ser a criatura fantástica mais lembrada e real em relação a tantas outras possíveis. Esse ser encarna a traição à família e às hierarquias tradicionais.

Câmara Cascudo escreve sobre o uso do sobrenatural para a imposição e manutenção de valores morais, ao examinar o lobisomem sertanejo:

“O medo ao sobrenatural, o castigo após a morte, a vastidão das penas, o tempo sem fim do remorso, são, através das idades, bases naturais das religiões. Seria inútil mostrar de como a Igreja Católica soube inteligentemente popularizar os seus dogmas, usando lendas cultuadas desde a mais remota ancianidade. … Dá-se como ultrajante e hórrida, sorte a deste animal vagabundo semipoderoso e semifrágil. Para atemorizar o sertanejo se fez mister uma pena, prolongada após a morte. Sem temer a lei, zombando da força e habituado às batalhas dos elementos, o sertanejo, sub-raça que se adaptara a todos os climas, necessitava desta ambiação mítica, pressão à sua luxúria porejante, à sua avareza latente, ao seu temperamento irrequieto, dentro de aparente insensibilidade.”

A existência dos lobisomens não era questionada, em Balduíno, nem pelos evangélicos, os mesmos que não temem o pecado de atacar a qualquer e em qualquer situação, a igreja católica.

Um amigo, pastor evangélico, graduado em teologia mas que cresceu em Balduíno — portanto uma das pessoas mais escolarizadas do bairro — me relatou ter escutado a presença de um lobisomem quando era mais novo, voltando de noite de uma festa. Viram um contorno de corpo no escuro com olhos vermelhos. No dia seguinte foram olhar o lugar onde a criatura teria estado e encontraram a vegetação amassada e restos de pena de galinha e sangue de bicho.

Em uma variação dessa história, narrado por esse mesmo amigo como verídica, um jovem mentiroso é encarregado pela mãe a levar a marmita para o pai na roça, mas come a comida e entrega a marmita vazia ao pai. Questionado, o rapaz, que era mentiroso, responde que era aquilo que a mãe dele, “que estava com um macho em casa”, tinha mandado. Sem pedir mais explicações, o pai voltou para casa com o facão na mão e esfaqueou a esposa. Antes de morrer, ela teria amaldiçoado quem tivesse “levantado o falso [testemunho]”, condenando a pessoa a zurrar como um jumento o resto da vida. Naquele momento o rapaz, que estava perto, soltou o primeiro zurro e a partir dali viveu comendo restos de mandioca nas casas de farinha.

Conversei longamente com esse amigo e pastor sobre o significado da violência. Mas antes de registrar o conteúdo dessas interações, reafirmo que se trata de uma pessoa que frequentou um curso universitário, que tinha um trabalho administrativo em uma agência de serviço do governo e que discutia política defendendo partidos de esquerda de maneira esclarecida, referindo-se a dados demográficos sobre melhora ou piora de condições de vida.

Havia, em Balduíno, dois tipos de violência: a maneira como pais e mães até recentemente educavam seus filhos, usando técnicas semelhantes às usadas para a punição de escravos — cipós, tipos específicos de ramos de árvores — e a violência trazido à localidade pelo crescimento urbano e pela chegada de “estranhos” (pessoas desconhecidas, vindas das cidades ou de outras partes do país, para trabalhar na região).

Meu amigo pastor não entendia como violência o ato de surrar os filhos, porque o propósito desse ato é, segundo o entendimento local, benigno. Uma amiga, também evangélica, falava sobre como ela e seus irmãos e irmãs amavam mais o pai, porque ele demonstrava o amor batendo nos filhos, enquanto a mãe era “menos interessada e distante”. Bater era um ato de imenso sacrifício e essa amiga falava das ocasiões em que o pai dela batia nos filhos e chorava ao mesmo tempo, pela dor de ter que punir uma criança dele.

Era quase um sacrilégio, um pecado, para essas pessoas, que eu relacionasse a violência provocada pelo criminoso com aquela causada de maneira sistemática, recorrente e intensa do pai ou mãe em relação aos filhos. A prática estava tão enraizada nas normas sociais que o grito de uma criança apanhando não provocava aflição entre os vizinhos, mas satisfação por constatar que aquele era um pai ou uma mãe que sabia educar suas crianças.

Vamos dar um passo além nesta reflexão que começou sobre lobisomens e evoluiu para examinar formas consideradas boas ou ruins de aplicação de castigos físicos. O filho ou a filha eram castigados pelos pais para não precisarem ser castigados depois pela polícia. A surra na família vacinava o indivíduo para que ele ou ela soubessem respeitar a propriedade dos outros, respeitar os outros adultos e, sobretudo, se tornassem “trabalhadores honestos”, mesmo sendo pobres.

A polícia era uma estância superior de punição e eu soube de pelo menos um caso em que a mãe, desistindo do esforço de recuperar um filho adulto que se envolvera com o crime, chamou, ela mesma, a polícia para ele ser preso e parar de criar problemas para ela e para a família no bairro.

Uma outra senhora me contou que, para educar uma filha jovem que a estava desrespeitando (não respeitava a hierarquia familiar), pediu a um amigo oficial da polícia que prendesse a filha dela em uma festa e mostrasse a ela durante um período curto de tempo, o que acontecia com as pessoas que eram presas. O “susto”, segundo essa mãe, funcionou e a filha passou a ouvi-la e a comportar-se de maneira responsável.

Os pais educavam seus filhos pela violência porque tinham sido educados assim e é esse tratamento que, segundo a experiência de muitas gerações de moradores, decidirá se o filho ou filha viverá ou será morto pela polícia. A lógica, ou quanto eu consegui entender desse assunto a partir das muitas conversas com os moradores de Balduíno, é que qualquer pessoa, em alguma situação, pode se ver longe de casa e sendo preso ou questionado pela polícia, e é a demonstração do respeito à autoridade aprendido em casa que sinalizará se aquela pessoa, na condição de anônimo, é um “trabalhador honesto”.

Pais e mães de Banduíno falaram frequentemente e espontaneamente sobre como seus filhos e filhas tinham se tornado insolentes porque agora a lei os obrigava a ir para a escola ao mesmo tempo em que proibia o trabalho até os 16 anos. Essa dupla mudança, junto com o crescimento do número de mães trabalhando fora e longe de suas casas, na visão dos locais, tirava a criança e o jovem da convivência com seus parentes e estimulava o convívio com “colegas”. Esse convívio fora da supervisão familiar provocava — eles afirmavam — a quebra do sentimento de respeito por parentes e por outras pessoas adultas.

O “colega” é a nemesis, o inimígo da família. O convívio em grupos de colegas estimula a atitude rebelde, a busca de aventuras, o desafio do que deve ser respeitado, por exemplo, a propriedade alheia ou a demonstração de obediência aos adultos em geral. Quem opta pelos colegas, segue um caminho de desobediência que conduz à criminalidade; quem escolhe a família, põe sobre si o que poderia ser chamado metaforicamente de um manto invisível de proteção e anonimidade que aumentará as chances da pessoa de não ser preso e, sendo preso, não dar motivos para ser assassinado ou levado preso.

Essa tensão familiar, entre a noção de vida hierárquica e submissa e a de vida livre e rebelde parece ser um fenômeno associado ao processo muito rápido e intenso de crescimento urbano provocado principalmente pela chegada de migrantes sertanejos fugindo da seca no Nordeste a partir dos anos 1950. De um lado a família tenta impor conformidade e submissão e, do outro, o convívio com outros jovens acende a vontade de escapar da condição de subalternidade. O antropólogo Gabriel Feltran da UFSCar registrou um trecho de conversa que, em duas linhas, sintetiza e ilumina o que ele chamou de “fronteiras da tensão” (2). Feltran presenciou a conversa entre um educador e um rapaz recém saído da internação na FEBEM, em 2003. O educador “perguntava se [o jovem] não iria tentar um trabalho, mostrava-lhe que todos seus amigos do crime tinham morrido, ao que ele respondeu: — trabalhar para quê? Para ser igual ao meu pai? Prefiro morrer cedo”.

Talvez o lobisomem não seja, portanto, um ser fantástico que vive na imaginação das pessoas. Talvez a quantidade de casos relatados por Câmara Cascudo, muitos narrados a ele ou registrados por testemunhas oculares, sugira que a fantasia e a imaginação não se confinam a lendas feitas circular para provocar medo e educar os sertanejos. O invisível encontra a matéria, por exemplo, em ritos de incorporação espiritual presentes não apenas nas cerimônias de religiões de matriz afro, mas comuns e recorrentes em centros espíritas kardecistas. A única pessoa que, ao longo dos 18 meses em campo, que desdenhou enfaticamente da existência de lobisomens fez isso dizendo: — Que lobisomem que nada. Isso hoje são histórias ingênuas, antigas. Hoje o que existe é o traficante.

(1) CASCUDO, C. Licantropia sertaneja. Imburana — revista do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses/UFRN. n. 9, jan./jun. 2014

(2) FELTRAN, G. Fronteiras da Tensão. 2011.

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