O fim do mundo está próximo, salve-se se quiser
É tarde para substituir o modelo econômico planetário e salvar o futuro, mas você pode aproveitar melhor o tempo que resta.
Há milhares de anos — pelo menos na tradição cristã — aparecem pessoas anunciando o fim do mundo. Jesus foi uma delas. Muitos outros vieram a seguir.
É, portanto, curioso e irônico que quem esteja dizendo isso agora são cientistas.
Mas mesmo esses cientistas parecem falar movidos por um sentimento sagrado, por algum tipo de fé.
São como um tipo de profetas que, diferente dos anteriores, não querem converter pessoas para uma religião a partir da ideia de que a salvação está no outro mundo, na outra vida.
Ao contrário, esses profetas cientístas são tremendamente impopulares. Mesmo quem acredita neles — relativamente poucos — ou quem entende a lógica de seus argumentos — pouquíssimos — continuam seguindo a vida normalmente.
Esses profetas estranhos não vendem a narrativa da vida em outro mundo, nem falam sobre você ou eu. Eles falam apenas do fim deste mundo, e se referem aos habitantes do planeta que nasceram recentemente ou nascerão nas décadas vindouras.
Entendeu a ironia?
Ao contrário dos outros profetas que, de certo modo, pareciam torcer pelo fim do mundo, para provar a teoria de que o ser humano é pecador, esses novos profetas agem por fé ou desespero; eles desejam que a humanidade mostre que é melhor do parece, menos mesquinha e imediatista.
Eles não querem que o mundo acabe. Eles acham o mundo um milagre. Eles vêem esses milagres por todos os lados, não por meio de transes místicos, mas por telescópios e microscópios.
Eles veem a mágica da vida no planeta azul e como ela é rara. Porque você pode procurar olhando para galaxias próximas e não tão próximas sem encontrar nada com a exuberância misteriosa da terra.
É verdade, a tecnologia corrente, poderosa em relação a cem anos atrás, provavelmente não triscou no fim da primeira camada da imensidão do espaço. Mas ainda assim, estatisticamente somos uma grande exceção.
“Mas por que o fim está próximo,” você pode estar se perguntando? “Por que devemos acreditar que desta vez é serio?”
Não é porque o processo que está em curso seja irreversível. Aparentemente não é. Segundo o livro-reportagem do jornalista do NYTimes, David Wallace-Wells, A terra inabitável, ainda dá tempo de puxar o freio.
A conclusão do livro — spoiler alert, mas ele escreve isso logo no começo do livro — é que as mudanças na atmosfera já são irreversíveis, mas as consequências delas talvez sejam moderadas, caso a poluição atmosférica seja dramaticamente reduzida rapidamente.
O motivo de o fim estar próximo é que, sendo honestos e realistas, estamos muito embalados na (e dependentes da) industrialização para fazermos coletivamente as transformações necessárias para evitar o caos climático.
Vou abrir um parêntese curto para explicar o que os profetas da ciência dizem em unanimidade.
O termo “aquecimento planetário” dá uma ideia equivocada de que a vida continuará igual, só que com um pouquinho mais de calor. Mas não é isso. Em resumo, esse pouquinho mais de calor — aquecimento de mais 0,7°C aproximadamente — romperá a estabilidade climática do planeta.
Em vez de primavera, verão, outono e inverno, em loop a cada 365 dias, teremos — como já aconteceu outras vezes no planeta — secas prolongadas em algumas regiões e em paralelo, o derretimento da calota polar provocando o aumento do nível do mar.
A consequência disso deve ser a migração em massa de seres humanos das áreas afetadas — entre 600 milhões e 2 bilhões de pessoas, segundo as estimativas citadas por Wallace-Wells. E essa população de desabrigados e famintos deve se mover na direção de onde há segurança, provocando a desestabilização também dos países ricos.
Pense no que aconteceu no mundo deste o início da guerra na Síria, há menos de uma década. Foram 2 milhões de pessoas migrando do Oriente Médio e da África em direção à Europa. O cenário mais otimista das consequências do caos climático, esperado para a segunda metade deste século, estima o número de migrantes 300 vezes maior do que esse.
A questão que fica é: — por que os esforços ainda são insuficientes para garantir que a poluição atmosférica seja contida antes que esse efeito em massa se inicie?
Apesar da complexidade do fenômeno físico-químico, o motivo da relutância ou desinteresse para salvar o planeta parece simples e fácil de se explicar:
- Quem vive hoje como adulto provavelmente já terá morrido quando o desajuste climático e social acontecerem. O aquecimento vem se acumulando gradualmente desde a Revolução Industrial, e é provocado pela emissão de gases associados a ações humanas. A atitude do ser humano em geral hoje parece com a do inquilino, que não se interessa em preservar a casa, porque não considera que irá desfrutar dela no futuro; e espera que, quando o vazamento acontecer, o proprietário intervirá para fazer o conserto.
- Estamos, como espécie, dependentes da industrialização. Os sócios-donos do mercado e das indústrias têm mais poder de influência em governos do que os habitantes. E a lógica do mercado depende de crescimento: não é suficiente atender necessidades, a meta é sempre bater a meta, expandir, multiplicar, ampliar a escala produtiva e incentivar o consumo independente da implicação dos efeitos colaterais da produção industrial e do que será feito com o lixo produzido e descartado (novos celulares, por exemplo) para que novos produtos sejam consumidos.
Em um mundo que funciona hoje baseado na lógica do crescimento do consumo, qual é a viabilidade de se manter o crescimento e reduzir drasticamente a emissão de gases poluentes? Usando bom senso e honestidade, é improvável que isso aconteça, mas espero estar errado, e que a própria tecnologia produza soluções para despoluir a atmosfera.
Por via das dúvidas, milionários melhor informados estão comprando terrenos em partes elevadas do planeta, construindo bunkers com estoque de alimentos para durar dezenas de anos e investindo na produção de foguetes que hoje servem para turismo mas amanhã talvez sirvam para castas endinheiradas habitarem condomínios privados acima da atmosfera. Surpreendentemente isso não soa mais realista e viável do que desestimular o consumo de produtos e serviços— carros, televisão de LED, Netflix — que até recentemente a humanidade não teve e não sentiu falta de ter.
Penso nessa perspectiva de futuro com resignação.
Não quer dizer que não valeu a pena. A nossa foi uma aventura desde a época dos caçadores coletores nas artes, na ciência e na filosofia.
Talvez o melhor a fazer agora seja aceitar que estejamos, enquanto espécie, nos aproximando do fim, da mesma maneira como um corpo nasce e eventualmente morre, por causas naturais ou artificiais. Aproveitar esse tempo para celebrar a despedida; sair — quem puder sair — da esteira de hamster da produtividade e procurar o “caminho menos seguido” proposto por Roberto Frost.
Talvez a humanidade inteira não consiga se dar conta de que o fim está próximo e tenha assuntos mais urgentes para tratar — como conquistar o almoço do dia seguinte. Mas você pode, se quiser, sair da Disneylandia consumista, reduzir o tamanho da sua vida e das suas obrigações cotidianas para apenas preciar. E, sendo profundamente egoísta em relação ao mundo, aproveitar o seu tempo com coisas que importam como fazer amigos, olhar para as coisas até elas se mostrarem estranhas e surpreendentes, cuidar de alguém, passar mais tempo junto. E viver — isso soa clichê — como se não houvesse amanhã. Porque logo não haverá.
Cada um faz o que quer da própria vida. Quando a Bolsa de Nova York quebrou em 1929, ex-milionários se suicidaram — deixaram suas vidas, suas famílias, o tempo que teriam pela frente, os livros que poderiam ler, as experiências que ainda teriam, os amigos que poderiam fazer — apenas porque o dinheiro que eles achavam que existia, deixou de existir. Ninguém roubou, ninguém quis conscientemente que aquilo acontecesse. E isso provocou desespero e humilhação solucionados, em alguns casos, pelo suicídio.
Talvez se a transição fosse mais gradual… Por exemplo, na coletânea de casos verídicos organizada pelo escritor americano Paul Auster e lançada no Brasil com o título Achei que meu pai fosse Deus e outras histórias verdadeiras da vida americana, uma autora conta que vivia em uma casa grande, trabalhava no setor imobiliário, os filhos já tinham saído de casa, ela estava divorciada, e parou para pensar em como seriam os anos e as décadas seguintes de sua vida: — muitas horas de trabalho enquanto aguentasse, refeições na frente do computador, talvez algum turismo, até eventualmente ir para um asilo para terminar seus dias.
A visão sem véus de como seria o futuro dela, baseada na observação de como viviam e morriam seus conhecidos e vizinhos, produziu nela uma visão nova de futuro. Ela vendeu o que tinha e “comprou” os anos que tinha pela frente, poucos ou muitos. Pediu demissão do trabalho, vendeu sua casa, colocou o dinheiro em uma aplicação bancária e se mudou para uma cidade pequena com um clima melhor e que — o básico do básico — tinha um clube de esportes público onde ela poderia fazer natação, e uma biblioteca. Ela alugou uma garagem desocupada nos fundos de uma casa com um jardim, e passou a viver assim: gastando pouco para se manter, sem ter coisas para cuidar ou carregar, usando a piscina, lavando as roupas no clube, e passando as tardes na biblioteca.
Não é apenas um sonho — é uma possibilidade — , e talvez tambem não seja difícil de ser realizado. Especialmente considerando que a humanidade quase certamente não terá tempo aprender com seus erros até eventualmente se estabelecer como uma sociedade mais justa e fundada no respeito e na cooperação. Portanto, sinta-se livre para fazer o que quiser.
Em resumo — e sem querer soar alarmista nem cínico— , os ambientalistas que percebem o avanço do aquecimento global parecem estar vivenciando aquilo que a médica suiça Elizabeth Kubler-Ross teorizou, em relação aos estágios da morte, como sendo o momento de negação da realidade. É uma pena — que também produz uma espécie de alívio — que a nossa viagem esteja acabando. Mas a terra já passou por esse tipo de transição antes e provavelmente sobreviverá, e isso é um alento