Quando tudo isso passar
Hoje pela primeira vez na vida estoquei provisões por medo do que virá
Ontem resolvi escutar o pronunciamento do Trump sobre o Corona. Não sou de escutar pronunciamento, mas quis saber o que o chefe de estado da nação mais rica do planeta tinha a dizer sobre essa pandemia.
Depois de falar sobre planos de contingência para os americanos pobres afetados pela doença, ele anunciou – e talvez ali alguma coisa tenha se partido, uma mudança inesperada de curso na narrativa – a suspensão dos voos entre os EUA e a Europa por 30 dias a partir desta sexta.
Ele não estava falando de proibir viagens à América do Sul ou ao Oriente Médio, mas à Europa. Ele acusou os governantes europeus de não terem respondido rapidamente proibindo os voos vindos da China (como ele fez) e que por isso a Europa se tornou hoje o caminho por onde o vírus está viajando para a América do Norte.
Me permitam um instante de flashback para 2001 – e antes de fazer isso, pego uma cerveja na geladeira e abro.
Eu estava em Manhattan no dia 11 de setembro. Nesse dia a polícia estava concentrada na área das Torres e os outros bairros ficaram expostos. Eu fui perseguido por quatro adolescentes voltando pra casa, porque não tinha polícia na rua.
Já faz algumas gerações que muitas pessoas no ocidente (aquelas com cursos universitários e que frequentam o dentista a cada seis meses) não vivem essa sensação de ver a normalidade partida. Em geral tudo está tão encaixado: horários, atividades, hábitos, que nos dá a impressão de viver em uma bolha de segurança. Acho que isso é verdade até certo nível. Mas eventualmente ela racha; um acidente, um assalto, uma notícia inesperada.
Muitas das ligações invisíveis que dão sentido aos muitos acontecimentos aleatórios – a rotina de ir e voltar todos os dias, os vizinhos, certos programas de tv – podem se romper. E o que aparece não é bom ou ruim, é estranho. Parece com a experiência do Neo quando ele se desconecta do Matrix: estamos ao mesmo tempo no mesmo lugar e em outro.
Antes do 11 de setembro eu fantasiava viver situações de cataclisma (é um pensamento ridículo, me perdoe a sinceridade) e associava isso a aventuras e a oportunidades de viver o Real, separado da rotina. Mas o que aconteceu comigo em Nova York não foi isso. Foi estranho. Mas não cheguei a passar muito tempo nessa situação porque a normalidade foi retornando à cidade, e até algo bonito até apareceu ali. A cidade que antes era dominada por gente áspera e distante viu aparecer pessoas mais presentes uns nas vidas dos outros. Muita gente morreu no ataque e seus rostos em fotografias estavam espalhados pela cidade – por amigos e parentes esperançosos de que seus entes estivessem apenas perdidos. Como depois de uma tempestade brutal, os dias seguintes parecem mais bonitos.
O ataque às Torres Gêmeas foi um evento que durou ao todo duas horas; o resto do que aconteceu foram ações para cicatrizar a ferida. É diferente dos vários anos de ruptura das regras e das leis vividos por quem viveu na Europa entre 1914 e 1917, por exemplo. O melhor livro que eu conheço sobre este tipo de experiência é O Mundo de Ontem (título que eu insisto em achar – Freud explica – que é O mundo do amanhã), do austríaco Stefan Zweig.
Mas me perdoem as muitas digressões. O assunto deste registro é o Corona. Retorno a ele.
Eu passei 12 dias na Inglaterra recentemente. Poucas pessoas estavam de máscara no meu voo de ida – eu era uma delas. E conforme eu notei na pele, o mascarado é examinado por todos os olhos do voo, mesmo dos que fingem nos ignorar. E tenho certeza que, ao nos ver passar, os que estavam sem máscara mergulhava-me em indagações. Nós, mascarados, éramos ao mesmo tempo exemplos de paranoia, de traição (por plantar sementes de dúvida) e de corajem, por escolher a precaução apesar do desconforto físico e do preço de ficar exposto.
Ontem um amigo me disse, com ar profético, que tudo será diferente na semana que vem. Foi isso me lembrou a experiência do 9 de Setembro em Nova York e da vulnerabilidade explícita ou explicitada por choques semelhantes ao que aconteceram naquela cidade naquele dia.
Enfim, o vírus do Corona mental me invadiu. Me senti um idiota indo ao supermercado para fazer uma compra 20 vezes maior do que eu faço regularmente, e comprando coisas que eu não compro, apenas porque elas duram. Comprei também dois pacotes de sabão para banho, um pacote econômico (grande) de papel higiênico, duas caixas de sabão em pó. Dispensei a água engarrafada porque imagino que dê para ferver. Comprei atum e sardinha aos montes, muito feijão, latas de leite em pó, suco concentrado. E outras coisas secas, enlatadas ou para higiene.
As provas de que este texto é baseado em fatos reais
Quase morri carregando as caixas os três andares do prédio sem elevador onde eu moro.
Tenho conversado com pessoas. Muitas resistem ao vírus da paranoia; acham exagero correr para supermercado com apenas 50 casos confirmados no país. Eu respeito, e desejo que eles estejam certos e riam do meu surto pré-apocalíptico quando tudo isso passar.
Eu nunca fiz isso. Estocar comida, produtos de limpeza. Mas estou orgulhoso por ter agora essa mínima reserva, que talvez seja igual a nada dependendo de como a situação evoluir.
Quem sabe se teremos que ficar, como os italianos do Norte, fechados em nossas casas? E se isso se espalhar mesmo, e o Corona mental se juntar ao Corona biológico e ainda ao Corona econômico, um amplificando o outro? Se os hospitais não derem conta e os doentes ficarem sem tratamento? E como será a prevenção dos médicos e enfermeiras? Se é verdade que o Corona biológico mata apenas 3% dos infectados, também é verdade que a maior parte dos casos fatais são de pessoas idosas.
Como será esse mundo, com tantas empresas falindo, com desabastecimento? Neste momento em que bravatas sugerem a possibilidade de uma nova ditadura – será este vírus a desculpa que falta? E há também a incerteza: aparentemente o ciclo planetário do Corona biológico durará quatro meses. Como estaremos? Com quem estaremos? Com quem não estaremos? Quanto tempo vamos esperar até recuperar as rotinas e a normalidade? Estaremos lá para contar como foi?
Neste momento tudo ainda parece tranquilo. É fim de dia. Escuto conversas vindas da rua. Carros passando. Uma das gatas está sobre a mesa, deitada e despreocupada, olhando as vezes para alguma coisa, em seguida fechando os olhos. Tem comida na geladeira. Posso falar com quem eu quiser neste exato momento. Mas a incerteza deste intente produz uma melancolia antecipada, uma saudade deste agora, destes dias normais.
Talvez não seja nada. Aliás, certamente será diferente de tudo o que se previu.
Tenho medo e me sinto vulnerável. Será que precisarei me armar? É ridículo admitir estar pensando essas besteiras. Mas vamos ver o que nos espera. Até.
PS. O Flávio, mais conhecido como Flavião, meu irmão de vida que me deu um “caldo” inesquecível – que quase me levou a óbito – as nossas vidas ainda estavam no capítulo 1, me escreveu tirando sarro deste texto. E ele fez isso com o ótimo humor (e amor) que ele tem. Por isso vou compartilhar seu comentário privado aqui – inclusive por já estar envergonhado por ter escrito sobre essas loucuras íntimas. Mas vamos ao comentário do Flavião: “Pütz vc noiou medium mesmo espero não ter ajudado mas assim só semeia pânico… e as hordas vão assaltar sua despensa eu incluido kkkk. Espero que tenha algo com álcool…”